quarta-feira, 11 de maio de 2016

Crônica de uma morte assistida

Antes, a gravidez sempre foi interrompida, algumas vezes involuntariamente, em outras por simples escolha. As intempéries casuais a tudo isso deram causa. No entanto, após longos anos, o que antes não se mostrava possível, encontra a culminação precisa para sua concepção.
Todos ficaram em polvorosa. Todos os gestos possuíam uma agitação serena. Os semblantes eram de feliz ansiedade.
O pré-natal fora religiosamente feito, a todos divulgados os resultados parciais dos exames indispensáveis. Todos comemoravam a cada notícia positiva, parecendo que cada um era o responsável pelos êxitos daquela gestação. Até que veio um dos mais esperados dias, e a felicidade repousou enfim em todos que ouviam aquela notícia, pois, dali em diante, sabiam, nada mais poderia dar errado: era uma menina, e estava perfeita.
Seu nascimento trouxe o ímpeto e a necessidade de se travar a luta para seu crescimento, como o faz todos os filhos, que são os responsáveis por fazerem os, ontem filhos, serem hoje os pais. E a tenacidade dessa nova batalha fez surgir, como sempre o faz, os aparentemente paradoxais sentimentos de força e vulnerabilidade, esperança e desespero, ternura e rigidez.
Não cresceu livre das quedas, dos choros, dos gritos, dos castigos, mas também não deixou de passar por alegrias, êxitos, sorrisos e serenidades. Disso aprendeu que a única maneira de equilibrar de maneira suportável a dor e o prazer, o beijo e a separação, o fracasso e o sucesso, é não desistindo jamais, indo em frente apesar do que se aparente bom ou mau. E assim viveu, como vivem todos.
Porém, ao ensaiar uma vida independente, ao obter os resultados das conquistas, ao equacioná-los com as frustrações e, assim, iniciar sua maturidade, eis que acontece o que nunca se esperaria que acontecesse.
Em um domingo, aos 27 anos de idade, batem à sua porta e dizem que deve segui-los, sem tempo para pegar seus pertences ou se despedir de alguém. Prenderam-na em sua casa. Não entendendo o que se passava, perguntou por que estava sendo presa, no que responderam: - Não é da nossa incumbência darmos-lhe explicações.
Colocaram-na em um carro, e em sua cabeça puseram um capuz preto, com cheiro de couro, e a conduziram ao que inicialmente parecia um hospital.
Acordou depois de algumas horas, percebendo que fora sedada sem perceber, quando observou que na grande parede de vidro em sua frente, aglomerava-se uma multidão de pessoas, com câmeras, luzes, blocos. Ao olhar a televisão que suspensa em seu quarto, viu que o noticiário de maior audiência transmitia ao vivo sua agonia. Ela estava deitada, toda de branco, amarrados os braços e pernas, fraca o suficiente para não poder gritar, falar ou suspirar.
Surgiu o que pareceu ser uma equipe médica, com máscaras e toucas que só deixavam os olhos à mostra. Seu desespero exponenciava ao não entender o que se passava e ao mesmo tempo não ter qualquer condições de reagir, de gritar, de perguntar.
Durante dias os sujeitos que pareciam com médicos a visitavam para administrar doses de morfina suficiente para mantê-la consciente e ao mesmo tempo fraca para qualquer reação. As doses, no entanto, foram aumentando dia após dia, debilitando cada vez mais e irreversivelmente seu corpo e seus pensamento. Seus olhos vagavam no quarto, sem já se importar com as pessoas que a olhavam, nem com a transmissão ao vivo a todo o país de seus dias. Perguntava-se no seu silêncio onde estariam seus pais, o porquê duas suas ausências, se era intencional, se não os deixavam vê-la. Por não saber, sentia apenas um medo, cada vez mais crescente, cada vez mais fulminante. Até que um dia, menos de um mês após sua prisão, viu na parede de vidro os seus pais, ambos com semblantes serenos e sem qualquer sinal de medo, raiva ou desespero.
Durou poucas horas, porém, essa visita distante. Viu seus pais assinarem uns papéis e cumprimentarem cordialmente os sujeitos que pareciam médicos que a acompanhavam seu entorpecimento fatal. Depois disso, morrera, não na execução de uma pena, pois não havia crime, sem diagnóstico, pois não havia doença, sem a chande de sequer disso saber. Fora sepultada com a presença de alguns poucos amigos e namorados da adolescência, e enterrada na mesma cova rasa em que seus irmão não nascidos jaziam.