sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Meu testamento

Livre de qualquer induzimento ou coação, resolvo lavrar o presente testamento no qual exaro minha vontade, pela forma e maneira seguinte:

O que eu queria, meu filho, era te falar o quanto eu sorri quando te vi chorar pela primeira vez. Singular paradoxo de uma alegria causada por um grito de agonia. Mas é difícil ignorar a verdadeira agonia que tantos gritam hoje, causada pela omissão ou ação criminosa dos que empreendem forças para privar de liberdade, comida e felicidade tantos e tantos que, iguais a ti no momento do nascimento, se diferenciam por já estarem condenados a uma vida de sofrimentos e luta.

E por falar nisso, meu filho, queria muito te falar sobre as lágrimas que verti pelos teus sorrisos quando fixavas teus olhos no meu rosto, deitado no meu braço. Mas infelizmente sou obrigado a te falar que o sorriso é privilégio, que o máximo que se permite a muitos são intervalos de sofrimento, enquanto outros gargalham à custa da exploração dos que nascerão e morrerão inocentes.

O que eu queria mesmo, meu filho, era te dizer que o mundo é perfeito, que as pessoas são iguais em dignidade, mas você mesmo presenciará que a cor da pele, o sexo, a orientação sexual, a identidade de gênero, a condição social, a religiosidade e tantos outros fatores condicionam a forma que uma pessoa é tratada.

Queria muito te falar que, apesar das atrocidades que cometemos no passado, estamos progredindo, e tudo aquilo que outrora fora proclamado nos ventos da história está cada vez mais perto de se concretizar, mas o que vemos é um retrocesso, meu filho, um antagonismo gratuito, um ódio cada vez mais se agigantando, de modo que a esperança, meu pequeno, tem sobrevivido apenas nos corações dos que ousam sonhar.

Queria ser para você, meu filho, o ser perfeito que te inspiraria, o arquétipo do ser sem defeito, mas não, não mesmo, meu filho, quero te privar de me ver sofrer, de me ver chorar, pois eu fracassei e irei fracassar muitas vezes, e quero que você veja em mim, seu pai, um ser humano falho, muito falho, mas eterno cultivador do desejo do progresso e de evolução, pois apenas assim, reconhecendo os erros, somos capazes de mudarmos a nós e ao nosso meio.
Não, não quero mesmo, meu filho, chorar ou sofrer escondido de ti, quero, ao contrário, chorar abraçado a ti em qualquer momento que a dor me arrebatar, pois pior que sofrer é sofrer sozinho, e em ti quero encontrar meu refúgio. E da mesma forma, meu filho, não se acanhe em chorar junto comigo, pois se em alguém na sua vida você pode confiar, saiba que esse alguém é seu pai.

Muito provavelmente, meu filho, em algum momento da sua vida esse mundo te deixará abandonado em um turbilhão de dúvidas e incertezas, e talvez seja eu o teu repositório da indignação ou incompreensão. Mas não me importo, meu filho, que descontes em mim tua ira, pois saberei que a inconformidade só se insurge contra os que amamos, pois neles é que esperamos as respostas que não temos. Ser pai é ser paciente, e da mesma forma que sei que você se esforçará em compreender o mundo, eu me esforçarei em te compreender.

Eu também tenho certeza, meu filho, que ser pai é ter coragem, e por mais que possas achar que sou inabalável emocionalmente frente às tuas dúvidas, saibas que para tanto eu estarei empreendendo um esforço tremendo, tal como um equilibrista em uma corda bamba. Minha coragem estará sempre em te tratar com ternura, afeto, mas também com rigor, pois só assim nós dois poderemos crescer juntos.

E além do amor que eu irei te dedicar por toda minha vida, meu filho, peço que não me compreendas mal, mas saibas que um dos meus maiores desejos é te ver sofrer.

Quero sim, meu filho, que você sofra, pois não quero que você ignore o sofrimento de tantos e tantos seres iguais a ti que não terão o privilégio de sorrir. Quero, sim, que sofras, pois não quero que padeças omisso frente às injustiças que presenciarás inúmeras vezes na tua vida. Desejo que sofras muito, meu filho amado, ao presenciares a luta inútil que tantos irão lutar para sobreviver.

Quero te ver sofrer, meu filho, pois quero te ver lutando junto com os que pouca força têm para lutar. Quero te ver lutando, meu filho, ao lado dos que só recebem as pancadas do mundo. Não quero te ver calado, meu filho, frente ao mal que pode ser evitado. E quero, sim, te ver lutando a luta para que ninguém mais tenha que lutar.

E declaro a ti, meu filho, por fim, e a quem mais queira saber, meu amor incondicional a ti, e que se algo posso deixar quando eu morrer, que seja a certeza que teu pai só quis ver, em todos os dias da sua vida, um sorriso no teu rosto e que você possa amar muito e se amado mais ainda.

Que você nunca se sinta pesado.

Sejas sempre o fator de mudança que o mundo precisa.

Do seu pai, que hoje e para sempre te amará, Manoel.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Lírios e reformas

Isso porque sucessivos governos, querendo atrair imigrantes europeus, inclusive para melhorar a raça, a eles deu lotes de terra e ajuda econômica. Coisa que nunca se fez, e até se proibiu fazer, para os brasileiros.
(Darcy Ribeiro, O povo brasileiro)

Em 13 de maio de 1888, uma lei com dois artigos punha fim à escravidão no Brasil. O epíteto de Áurea aproximou a Lei assinada pela regente Isabel das luzes que os revolucionários franceses proclamavam em outro Continente. 
Sendo o último país das Américas e um dos últimos do mundo (antes apenas de Zanzibar, Etiópia, Arábia Saudita e Mauritânia), o processo foi lento e penoso no Brasil, com sua elite agrária e política resistindo com todas as forças a esse inescapável passo em caminho ao reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. A convicção de que homens e mulheres não podem ser instrumentalizados pelo simples fato de serem fins em si mesmos, detentores de uma dignidade que atravessa qualquer contingência, apenas lentamente se acomodou na totalidade dos brasileiros.
No dia seguinte, os festejos dos que entendiam a importância histórica dessa medida, ainda que tardia, contrastavam com as reações conspiratórias dos que definiam a nova medida como desestabilizadora da economia nacional, lamuriando suas perdas e a irremediável queda na sua qualidade de vida futura, tendo em vista que, de agora em diante, teriam que ser obrigados a pagar mão de obra.
Coadjuvante a este cenário, filas de negros agora livres cortavam os campos das lavouras, portando seus bens que, quando tinham, cabiam com folga em uma trouxa de pano. Olhavam-se como a perguntar um ao outro o que, agora livres, iriam fazer. As luzes dos ideais iluministas não chegavam a fazer esquecer que sua realidade em nada mudaria: sendo a liberdade a flor mais bela do campo humano, não exalaria seu perfume sem que as outras condições assim permitissem. A lei não basta, os lírios não nascem da lei, citaria, emprestando mais dignidade aos versos de Drummond, o Professor Antônio Cavalcante.
Livres, mas sem liberdade, pois ausentes as condições materiais para exercerem qualquer atividade, estigmatizados por séculos de legitimação legal da violência contra si, longe, portanto, de qualquer discurso meritocrático, viam-se novamente presos, novamente escravizados.
Aos que continuaram o caminho oposto à senzala, restou o subemprego, a discriminação, a periferia, quando não a criminalidade. Outros, no entanto, sem enxergar outros horizontes, esqueceram a dignidade que a lei os concedera e voltaram para implorar emprego aos seus antigos senhores que, muitas das vezes, há poucos dias haviam os torturados, em seus corpos e dignidades, pondo-os nas mesmas condições - as vezes nem tanto - de seus animais. Para alguns, essa seria uma negociação em igualdade, e resta perguntar em quais termos essa condições evoluiu desde então, mesmo com uma legislação que punha condições irrenunciáveis. 
Hoje o Brasil aprovou uma reforma trabalhista que, longe de se confundir com as condições de escravidão, traz para o mesmo banco empregado e empregador, além de simplesmente excluir inúmeros outros direitos tão duramente perseguidos através dos séculos; tira novamente do trabalhador brasileiro a possibilidade de ter o mínimo. Mínimo que sequer cogita a elite viver em tais condições. Mínimo que, a cada dia, a partir de hoje, será mais mínimo. 
As leis não fazem lírios, mas podem, sim, destruí-los.

sábado, 10 de junho de 2017

Gênero e cor da humanidade

"Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas..."
(FOUCAULT, Vigiar e punir)

A fotografia tirada por Will Counts retrata uma jovem com roupas claras, com um fichário ou caderno deitado em seu braço, carregando um semblante que transita entre o temor, a altivez, a coragem e uma tentativa de demonstrar indiferença. A jovem é Elizabeth Eckford, então com 15 anos de idade, sobressaindo em um grupo que fazia um tumulto devido à sua presença. Atrás de si, outros jovens gritavam coisas do tipo "Dá o fora, macaca", "Volta pro teu lugar", "Vamos linchá-la", "Vai pra casa, negona, volta para a África", frases que saíam das bocas violentamente escancaradas de jovens que formavam uma fileira atrás dela, logo à frente aos policiais que tentavam manter a ordem.
Elizabeth Eckford fez parte do grupo de nove jovens negros - em um universo de 2 mil alunos - que foram ao seu primeiro dia de aula na maior e melhor escola de Little Rock, Arkansas, Estados Unidos, escolhidos pela direção da Central High School para cumprir a ordem judicial de integração racial no país. A escolha fora rigorosa: os negros deveriam morar perto da escola, ter ótimo rendimento e aparentar ter atitude de não revidar às agressões que fatalmente iriam sofrer. Critérios, claro, que não se estendiam aos demais alunos.
Cerca de cinquenta anos após esse episódio, sua mera descrição causa repulsa aos que têm o mínimo de humanidade e respeito pelas diferenças. Hoje, apesar de vivermos, sim, em um país extremamente racista, ao menos a priori ninguém se assume explicitamente como racista, no que pese os sorrateiros atos de descriminação que diariamente ocorrem, e só quem é negro sabe a dor que é suportar o tratamento negativamente diferenciado nas suas mais varias formas. É verdade que o grande espetáculo do suplício se desintegrou e se transformou em minúsculas e onipresentes atos de agressão, em uma verdadeira microfísica da violência.
E essa nova forma de violência não é em nenhum grau menos dilacerante. Lutas históricas, no entanto, lograram o êxito de ao menos causar pudor aos crápulas que vociferavam despudoradamente seu ódio infundado. É o que ocorre, transposta as diferenças, com a comunidade LGTB.
Durante séculos, a naturalidade da homofobia não escolheu classe, país ou regime: ao mesmo tempo em que Cuba, nos primeiros anos pós-Revolução, perseguia os homossexuais, a liberal, moderna e progressista Inglaterra punia criminalmente com castração química  os chamados sodomitas. Da mesma forma, em graus diferentes, países em todo o mundo, se não institucionalizavam, ao menos não puniam a discriminação com os homossexuais.
Da mesma forma que a nação parâmetro da democracia e, de outro lado, uma ex colônia africana traziam em seu arcabouço político-jurídico a discriminação institucionalizada - EUA e África do Sul, respectivamente -, ainda hoje não é raro países patrocinarem normas que, de alguma forma, dividem os cidadãos entre os que devem possuir direitos e os que não o devem, pelo fato de terem uma ou outra orientação sexual ou identidade de gênero. Apenas recentemente decisões política ou judiciais buscam superar essa anomalia, sem, no entanto, evitarem discussões e atos acalorados dos que acham o contrário. 
Sejam leis que proíbam o casamento, seja a tácita norma que proíbe casais do mesmo sexo de se comportem da mesma maneira que casais héteros, a segregação irracional contra os LGBT's perpassa nossa atualidade, e os transformam em cidadãos de segunda classe que correm o risco iminente de sofrerem agressões tão ou mais violenta dos que sofreu Elizabeth há cerca de cinquenta anos.
De nada vale, no entanto, a aguerrida luta de alguns parlamentares ou movimentos em busca de garantir direitos a quem merece, e aos que por tantos anos vêm sofrendo as mais variadas formas de dor por algo que não deram causa, se não ocorrer, de fato, em cada um, a conscientização que assuntos de ordem pessoal devem se restringir... à intimidade, e refrear os que querem impor suas convicções aos demais.
E esse argumento não se amplia aos que acham que, assim o sendo, não se deve falar abertamente e ensinar a todos, inclusive às crianças, que não há relativização à discriminação. As crianças, mais do que ninguém, devem absorver diariamente a noção de que elas não devem praticar violência contra seus colegas de colégio, seus futuros colegas de faculdade ou de emprego, além das muitas outras pessoas com as quais irão conviver durante sua vida. Para além de um caolho e minimizante argumento de prática doutrinária por ideologia de gênero, essa educação é o ensinamento do respeito a todos, e um necessário contraste com situações de agressão que irão presenciar, infelizmente, pelas suas vidas.
Da mesma forma que, hoje, não se admite, ao menos explicitamente, agressões contra negros pelo simples fato de serem negros, não se deve admitir também as mesmas agressões contra gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O espectro da sexualidade humana é tão complexa como sua própria natureza, e a redução dogmática que ainda hoje se faz não tem raízes em fatores outros que não a cultural, e, somente através de uma mudança na cultura, se mudará atitudes e a realidade. 
Não é necessário ser negro para ser contra o racismo, da mesma forma que um hétero pode, e deve, levantar a voz contra a homofobia e contra as demais discriminações. Que seres humanos defendam seres humanos, sob pena de, amanhã, sermos nós os que figuram em uma atualizada fotografia de Will Counts agredindo alguém que ostenta nada mais do que o seu ser. 
A humanidade não tem cor nem gênero.

Na cidade de Mossoró, RN, sabendo que seu filho gostava de lavar louças e de dança do ventre, e com o temor de que, por esse motivo, ele fosse homossexual, o pai espanca o franzino corpo do seu filho dias a fio, para ensiná-lo a andar como homem. Com oito anos de idade, a criança tem seu fígado dilacerado e morre pouco depois.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Gestão política ou privada

- Eu sei. E isso é mais uma razão para ser severo. Sua elevada condição intelectual traz consigo responsabilidades morais correspondentes. Quanto maior é o talento de um homem, mais poder tem ele para desviar os outros. É preferível o sacrifício de um à corrupção de muitos. Encare o caso sem paixão, Sr. Foster, e verá que não há crime mais odioso do que a falta de ortodoxia na conduta.
(HUXLEY, Admirável mundo novo).

Nos últimos anos, figuras como Michael Bloomberg, Donald Trump, João Dória e outros abastados, ao se envolverem na política com o argumento de administrar o bem público com o mesmo esmero com o qual ergueram suas fortunas, prometendo a reprodução do sucesso de seus empreendimentos nos assuntos da urbe, fez erguer, não só no Brasil, é verdade, mas também aqui, um culto ao imparcial e apolítico homem bem sucedido financeiramente - ou um self made man - que, altruisticamente, dispensará agora seu know how para fazer não política, mas, sim, administrar a todos nós.
Claro que a crítica não se dirige no sentido de impedir ou desqualificar como gestor público alguém que ocupe determinada profissão, implicando necessariamente em um fracasso travestido assepticamente de sucesso. Mas o contrário também não é absoluto, e pelos mesmos fundamentos.
O mais preocupante não é o fato de que empresários se tornem políticos per si, mas sim a lógica que se está disseminando na sociedade de que os fundamentos da administração privada se aplicam à administração pública, e que ser bem sucedido nos seus negócios particulares levará, invariavelmente, ao sucesso e à bonança equivalente nos assuntos públicos.
Não é tarde lembrar que os princípios da iniciativa privada diferem dos da administração pública, basta lembrar o ensinamento de que, sendo a menor distância entre dois pontos uma linha reta, a lógica da economia na construção de uma estrada desconsideraria uma árvore milenar ou uma pequena - e economicamente desimportante - comunidade que atravancasse o seu caminho. 
Se essa lógica se aprofundar, logo se exigirá curso superior como requisito para ocupar cargos públicos, nos levando ao caminho da platônica sociedade administrada por filósofos, a elite grega, transposta para os operadores das engrenagens econômicas que formam a minoria dirigente nacional, a elite brasileira, tão distantes dos que compõem a maior área da pirâmide social brasileira, escamoteando progressivamente o povo da participação direta e efetiva dos rumos de sua sociedade.
Foge à lógica empresarial o empreendimento de gastos sem retorno econômicos, que formam o sustentáculo de uma sociedade desigual e, em sua maioria, sem acesso aos bens na mesma medida e qualidade que a minoria, sendo a mão  do Estado - precária, é verdade - a única que se estende para que seja garantido o mínimo aos que, com os próprios pés, hoje, não conseguiriam o sustento para si e para seus familiares, muitos dos quais integrantes das classes historicamente exploradas, relegadas, condenadas a um destino de esquecimento e discriminação, e só com mudanças profundas, e, por isso, demoradas, chegariam a uma mesma condição de competição com os que não herdaram as dificuldades e dores que nunca conseguirão compreender.
O temor de que surge é que os critérios de engajamento social e político, disposição e talento para liderar uma política econômica e social de distribuição de renda, desenvolvimento, direitos sociais etc., sejam substituídos por um exclusivo talento em manejar a burocracia, que encanta uma população que parece se inebriar com a perfumaria de um linguajar exótico, aparentemente culto e, ainda, eventualmente, a modéstia milimetricamente fabricada que chega a ignorar a própria eficiência tão defendida para se fantasiar de gari em investidas publicitárias, em um claro reconhecimento do abismo que separa duas classes, emulando uma profissão que nunca exerceria na prática, com um implícito desejo de que essa diferença assim continue, para, oportunamente dela se apropriar.
Difícil, sim, saber se a prática não ignora qualquer euforia eleitoreira e, de fato, já não são, há tempos, esses mesmos residentes do topo da pirâmide os únicos aptos a se elegerem, dado a difícil transposição que a estrutura econômica impõe em um certame político. Mas havendo um impedimento, mesmo que ao nível psicológico, aos que advém das camadas baixas de ocuparem os cargos de representação, nossa sociedade irá, de fato e de direito, ser tomada das mãos do povo e, fatal e progressivamente, transformada em uma planilha de números que não cabe e não compreende a narrativa histórica que fez dessas terras o Brasil de hoje.

Digressão histórica:

Proclamada a Independência, tornou-se imperioso a consolidação política e jurídica do novo país. Para tanto, convocou-se uma Assembléia Constituinte sob a condução de José Bonifácio de Andrada, que leva as discussões a uma posição mais liberal, relativizando o poder de D. Pedro I que, percebendo os rumos que o levariam a uma perda de poder e, também, perda do apoio da elite politico-econômica que tinha interesse na sua manutenção com o poder na Coroa, desmantelou a constituinte e proclamou, em 1824, a primeira Carta Política brasileira que, dentre outros, impedia  a participação na vida política "Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego".

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Por que sou contra as Diretas

- Não o surpreendeu meu aparecimento súbito?
- Não - replicou -, tais visitas ocorrem de século em século. Não duram muito; o mais tardar, amanhã estará em sua casa.
(Borges, Utopia de um homem que está cansado)

A obrigatoriedade do uso de terno e gravata, para os homens, e roupa composta, para as mulheres, impedia a liberdade de movimentos necessários à profissão. O ar solene que a situação reclamava era impedida pelo calor causado pelas inúmeras lâmpadas, cabos, câmeras, e pelo amontoado de pessoas que um protocolo buscou, sem sucesso, organizar. Assim a imprensa cobria a posse de Michel Temer como Presidente da República em uma das salas do Palácio do Planalto no ano de 2016.
Após um processo de impeachment que dividiu o país, Dilma Rousseff era deposta por ter cometido crime de responsabilidade, pena determinada pela Constituição Federal ao chefe do Executivo. Golpe parlamentar para uns, alívio a um Brasil agonizante para outros.
Com o Senador Aécio Neves fazendo as vezes de anfitrião do novo governo, Michel Temer divulgava o novo ministério, convocando cada um dos Ministros que entre palmas, gritos de comemoração, assobios e palavras de ordem, subiam em um pequeno palanque, ombro a ombro em várias filas desorganizadas delineando uma fotografia sem ordem ou composição.
Pouco mais de um ano depois dessa cena, surgem gravações em que o mesmo Michel Temer, em conversa com um empresário, incentiva-o a continuar pagando a quantia de quinhentos mil reais por semana a Eduardo Cunha, ex-Presidente da Câmara e grande regente do processo de impeachment, hoje preso em Curitiba. O dinheiro serviria para mantê-lo em silêncio sobre os bastidores do processo de impeachment e, provavelmente, sobre os bastidores de anos da política nacional.
Frente ao escândalo, partidos políticos, imprensa e sociedade civil surgem com teses que vão desde a renúncia até mais um longo e penoso processo de impeachment. Temer se recusa a renunciar, mesmo tendo sido desmentido poucas horas após fazer uma declaração à nação brasileira afirmando sua inocência, quando foram publicadas as gravações.
Não restam dúvidas da gravidade da conduta do Presidente. Difícil, inclusive, buscar na memória outro episódio na historiografia brasileira em que um chefe de Estado tenha agido de forma tão hedionda contra a moralidade e contra a probidade que o cargo exige que, apesar de sua recusa, e tendo em vista a já visível fuga de aliados e clamor popular, levará, cedo ou tarde, a sua queda, episódio que deixará mais cambaleante a democracia brasileira.
Destarte, uma discussão que se impõe é o que ocorrerá após sua destituição. E sobre isso que venho apresentar uma opinião que, por ser opinião, se baseia nas minhas concepções íntimas baseadas, em alguma medida, em textos que estimo serem de importância para o tema.
Basicamente, duas propostas foram levantadas: a primeira, a de eleição indireta feita pelo Congresso Nacional; e, a segunda, da aprovação de um Projeto de Emenda à Constituição que permitiria as eleições diretas ainda esse ano.
Sobre a primeira, facilmente se delineia seus fundamentos, pois o próprio texto constitucional em seu artigo 80, primeiro parágrafo, afirma que ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.
Assim, em caso de deposição do atual Presidente, o Congresso Nacional elegerá o próximo chefe de governo para concluir o atual mandato e, em outubro de 2018, as eleições diretas ocorrerão normalmente.
O dispositivo é sucinto e a Lei 1.079 - Lei do Impeachment - não disciplina a matéria, apesar do mandamento constitucional, o que deixa inúmeras dúvidas sobre os procedimentos tanto da eleição em si, quanto dos requisitos para os possíveis candidatos, o que, imagino, seria matéria de consulta e regulamentação no seu desenrolar pelo próprio Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal.
A segunda possibilidade seria a aprovação de um Projeto de Emenda à Constituição já protocolizado na Câmara Federal, que autorizaria a realização de eleições diretas, ainda esse ano, para à Presidência da República.
Proposta que não vejo como mais salutar. Apesar de reconhecer como tendo sido um golpe parlamentar o impeachment da Presidente eleita; apesar de reconhecer a debilidade do Congresso Nacional em eleger um Presidente; apesar de saber que só com legitimidade direta haverá possibilidade de alguma reconstrução do Estado brasileiro; apesar, ainda, de saber que a eleição indireta não trará qualquer benefício político para o Brasil. Apesar dessas convicções, e também a de que a Constituição teve uma sucessão de desrespeitos desde o ano passado, não vislumbro que mais uma anomalia poderia saná-la de tudo o que vem sofrendo; seria mais um retalho que o calor do momento - momento gravíssimo, é verdade - costuraria no texto político que por muito pouco vem se sustentando, tanto formal quanto materialmente.
Sim, o texto de 1988 levou seu mais violento golpe quando desconsiderou a legitimidade popular para servir a interesses espúrios de um grupo (me recuso a denominá-los como elite) que se sentiu ameaçado e articulou com os detentores de mandatos o julgamento de um crime que não ocorrera. Citar Kafka seria clichê.
Temo que esse sentimento de efemeridade substitua de vez o mínimo de perenidade que o Estado de Direito deve garantir à sociedade, consolidando a segurança jurídica, garantindo Direitos Fundamentais e a presença popular nos atos políticos.
Sim, desconsiderar os pilares que sustentam uma ordem constitucional tem seu preço, e tal como um grande navio que deve corrigir sua rota, manobrá-los é algo demorado, lento, custoso. Sim, algo lastimável, por fim.
Lembro que a grande celeuma dos que discordavam de que o impeachment de Rousseff era golpe se pautava no estrito respeito aos trâmites legais, caolha percepção dos que confundem processo com matéria, forma com conteúdo, em uma quase que transcrição do diagnóstico de Castanheira Neves sobre como o pensamento jurídico deixou de se preocupar com a validade e a intencionalidade normativas do direito – momentos essenciais do jurídico – para cuidar apenas de sua validade e intencionalidade cognitiva, levando a uma indiferença axiológica-normativa, ficando, assim, o pensamento jurídico pronto a ser sancionador e colaborador de possíveis despotismo. Para o Ínclito Professor português, o positivismo destruiu a razão, convertendo-a em técnica.
O professor espanhol Pablo Lucas Verdú, em sua obra A luta pelo Estado de Direito - brilhante referência à obra do alemão Rudolf Von Ihering - afirma que, no transcorrer do seu desenvolvimento, o Estado de Direito em suas múltiplas formas é uma conquista. Conquista a ser buscada diariamente. Não cabe dogmatismo no Estado de Direito, sendo este a única conquista contra o despotismo que, para além de um pensamento literalmente contratualista, aparenta ser a forma padrão em que se governa se não houver o Direito para impedi-lo.
Uma nova causalidade constitucional talvez derrube de vez o que nos resta democracia e de Estado de Direito. O Brasil sairá fraco de todo esse turbilhão, atingindo mais fortemente, como é quase tradição, os mais fracos. O povo brasileiro está suportando um golpe que não pediu, e um Congresso que não o representa teria que escolher seu novo chefe de governo. Mas é justo lembrar que esse mesmo Congresso é formado por representantes eleitos pelo povo e, de alguma maneira, o representa, sim.
Se passarmos a questionar a legitimidade indefinidamente de todos os órgãos, estamos falidos não representativamente, mas, sim, enquanto uma sociedade política.
Que tudo isso nos sirva de lição para olharmos com a atenção devida nossa condição de povo organizado e o modo como damos nossas vozes a quem deve falar por nós. Se assim não o for, só nos resta a luta para, mais uma vez, buscar salvar o Estado de Direito.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Lascaux, o espaço e as pichações

Em meados da década de quarenta do século passado, quatro jovens entraram em uma gruta no sudoeste da França sem qualquer pretensão. Em suas paredes, traços inicialmente disformes, em parte devido à enorme dimensão das figuras e da própria estrutura das paredes, em parte devido à primitividade dos traços e à deterioração sofrida em decorrência do tempo, passaram a formar frente aos olhos dos jovens figuras de animais: cavalos, bois, bisões, vacas. Certamente, uma qualquer estupefação inicial que tomou aqueles jovens não se comparou com o que depois o mundo da história e da arte foram tomados: estudos de Carbono 14 estimaram que tais figuras tinham entre 15.000 e 17.000 mil anos.
A certeza quanto a datação que os testes de carbono dão, não se pode também contar em relação aos significados e motivos que os artistas pré-históricos quiseram imprimir nas suas obras. Tal tarefa cabe aos historiadores e artistas. Seriam tais desenhos representações místicas que buscam conjurar no mundo real os animais, que são suas caças e seus alimentos? Talvez a representação figurativa do mundo conhecido por aqueles seres humanos? Ou, simplesmente, um exercício técnico do artista? Difícil, talvez impossível, chegar a alguma conclusão, ainda mais quando se trata de antepassados tão remotos que não deixaram escritos.
Um fato, porém, é inconteste: a precisão técnica e a beleza, tanto estética quanto humana, daquelas imagens. Em muitos desenhos se pode identificar a delineação de sombras, texturas e perspectivas realmente impressionantes. Ademais, e talvez superior a isso, a convicção de que, aqueles homens, idênticos fisiológico e anatomicamente a nós hoje, ensaiando os primeiros passos da arte feita com cuidado técnico e precisão apresentaram a nós, milhares de anos mais velhos, a superação da razão, em seu domínio técnico e na busca pela beleza, em comparação a animalização instintiva que nos fez sobressair sobre as demais espécies, conhecer, dominar e utilizar ao nosso favor - por vezes também ao nosso desfavor - os recursos do mundo que nos cerca.
Seria esdrúxula a comparação, pari passu, das pinturas da grota de Lascaux com as pichações e grafites que encontramos hodiernamente nas nossas cidades. No entanto, tal aproximação leva à reflexão acerca do espaço e dos surgimentos espontâneos da arte. Não havia no paleolítico as cidades nas quais hoje estamos inseridos. A natureza era a cidade daqueles homens, e tudo nela a eles servia. Com o surgimento da urbe, do Estado e da propriedade, concomitantemente se alterou a noção de espaço. Se antes, nada era propriedade, depois, tudo passa a ter um dono, seja o particular, seja o Estado, seja a coletividade.
Da mesma forma, a arte progressivamente foi sendo apropriada, seja pela tentativa de uniformização e padronização de técnicas e estilos, seja através de uma determinação quase mandatória dos lugares de sua exposição: museus e galerias, curiosa tentativa de domesticar o que de mais livre e espontâneo habita o ser humano.
Nos últimos dias, vimos o novo prefeito da cidade de São Paulo travando uma luta hercúlea contra as pichações e grafites naquela cidade, impondo uma acinzentada uniformização do espaço coletivo, apagando obras como o painel de Os Gêmeos - artistas reconhecidos e cultuados mundialmente - no Viaduto do Glicério. Para o prefeito, a arte tem ter lugar específico, quem quiser admirá-la tem que procurar seus espaços, quem quiser criar tem que se contentar com a limitação imposta pelo poder público, o que inviabiliza completamente os que, diferente Romero Brito ou outros afortunados, não têm condições de bancar a exposição de sua criatividade.
Os espíritos livres dos nossos ancestrais criaram nas cavernas uma obra que resistiu aos anos e nos mostrou os primórdios da complexidade de nossa mente, a intensidade da nossa abstração, a singularidade do fenômeno humano em transformar traços em simbolismo do mundo real, a habilidade das mãos formando na nossa percepção a reprodução da realidade, a formação da arte que nos conscientiza, nos fascina e nos emociona; o espírito fechado, ao contrário, dos que parecem ter na arte apenas um atestado capenga de seu pedantismo intelectual, querem se apropriar por exclusão desse mundo quase iniciático que seria a arte para eles.
Pablo Picasso, um dos maiores pintores da história, esteve na caverna francesa, e muitas obras suas, inclusive Guernica, teve grande influência das pinturas de Lascaux.