sexta-feira, 26 de maio de 2017

Gestão política ou privada

- Eu sei. E isso é mais uma razão para ser severo. Sua elevada condição intelectual traz consigo responsabilidades morais correspondentes. Quanto maior é o talento de um homem, mais poder tem ele para desviar os outros. É preferível o sacrifício de um à corrupção de muitos. Encare o caso sem paixão, Sr. Foster, e verá que não há crime mais odioso do que a falta de ortodoxia na conduta.
(HUXLEY, Admirável mundo novo).

Nos últimos anos, figuras como Michael Bloomberg, Donald Trump, João Dória e outros abastados, ao se envolverem na política com o argumento de administrar o bem público com o mesmo esmero com o qual ergueram suas fortunas, prometendo a reprodução do sucesso de seus empreendimentos nos assuntos da urbe, fez erguer, não só no Brasil, é verdade, mas também aqui, um culto ao imparcial e apolítico homem bem sucedido financeiramente - ou um self made man - que, altruisticamente, dispensará agora seu know how para fazer não política, mas, sim, administrar a todos nós.
Claro que a crítica não se dirige no sentido de impedir ou desqualificar como gestor público alguém que ocupe determinada profissão, implicando necessariamente em um fracasso travestido assepticamente de sucesso. Mas o contrário também não é absoluto, e pelos mesmos fundamentos.
O mais preocupante não é o fato de que empresários se tornem políticos per si, mas sim a lógica que se está disseminando na sociedade de que os fundamentos da administração privada se aplicam à administração pública, e que ser bem sucedido nos seus negócios particulares levará, invariavelmente, ao sucesso e à bonança equivalente nos assuntos públicos.
Não é tarde lembrar que os princípios da iniciativa privada diferem dos da administração pública, basta lembrar o ensinamento de que, sendo a menor distância entre dois pontos uma linha reta, a lógica da economia na construção de uma estrada desconsideraria uma árvore milenar ou uma pequena - e economicamente desimportante - comunidade que atravancasse o seu caminho. 
Se essa lógica se aprofundar, logo se exigirá curso superior como requisito para ocupar cargos públicos, nos levando ao caminho da platônica sociedade administrada por filósofos, a elite grega, transposta para os operadores das engrenagens econômicas que formam a minoria dirigente nacional, a elite brasileira, tão distantes dos que compõem a maior área da pirâmide social brasileira, escamoteando progressivamente o povo da participação direta e efetiva dos rumos de sua sociedade.
Foge à lógica empresarial o empreendimento de gastos sem retorno econômicos, que formam o sustentáculo de uma sociedade desigual e, em sua maioria, sem acesso aos bens na mesma medida e qualidade que a minoria, sendo a mão  do Estado - precária, é verdade - a única que se estende para que seja garantido o mínimo aos que, com os próprios pés, hoje, não conseguiriam o sustento para si e para seus familiares, muitos dos quais integrantes das classes historicamente exploradas, relegadas, condenadas a um destino de esquecimento e discriminação, e só com mudanças profundas, e, por isso, demoradas, chegariam a uma mesma condição de competição com os que não herdaram as dificuldades e dores que nunca conseguirão compreender.
O temor de que surge é que os critérios de engajamento social e político, disposição e talento para liderar uma política econômica e social de distribuição de renda, desenvolvimento, direitos sociais etc., sejam substituídos por um exclusivo talento em manejar a burocracia, que encanta uma população que parece se inebriar com a perfumaria de um linguajar exótico, aparentemente culto e, ainda, eventualmente, a modéstia milimetricamente fabricada que chega a ignorar a própria eficiência tão defendida para se fantasiar de gari em investidas publicitárias, em um claro reconhecimento do abismo que separa duas classes, emulando uma profissão que nunca exerceria na prática, com um implícito desejo de que essa diferença assim continue, para, oportunamente dela se apropriar.
Difícil, sim, saber se a prática não ignora qualquer euforia eleitoreira e, de fato, já não são, há tempos, esses mesmos residentes do topo da pirâmide os únicos aptos a se elegerem, dado a difícil transposição que a estrutura econômica impõe em um certame político. Mas havendo um impedimento, mesmo que ao nível psicológico, aos que advém das camadas baixas de ocuparem os cargos de representação, nossa sociedade irá, de fato e de direito, ser tomada das mãos do povo e, fatal e progressivamente, transformada em uma planilha de números que não cabe e não compreende a narrativa histórica que fez dessas terras o Brasil de hoje.

Digressão histórica:

Proclamada a Independência, tornou-se imperioso a consolidação política e jurídica do novo país. Para tanto, convocou-se uma Assembléia Constituinte sob a condução de José Bonifácio de Andrada, que leva as discussões a uma posição mais liberal, relativizando o poder de D. Pedro I que, percebendo os rumos que o levariam a uma perda de poder e, também, perda do apoio da elite politico-econômica que tinha interesse na sua manutenção com o poder na Coroa, desmantelou a constituinte e proclamou, em 1824, a primeira Carta Política brasileira que, dentre outros, impedia  a participação na vida política "Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego".

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Por que sou contra as Diretas

- Não o surpreendeu meu aparecimento súbito?
- Não - replicou -, tais visitas ocorrem de século em século. Não duram muito; o mais tardar, amanhã estará em sua casa.
(Borges, Utopia de um homem que está cansado)

A obrigatoriedade do uso de terno e gravata, para os homens, e roupa composta, para as mulheres, impedia a liberdade de movimentos necessários à profissão. O ar solene que a situação reclamava era impedida pelo calor causado pelas inúmeras lâmpadas, cabos, câmeras, e pelo amontoado de pessoas que um protocolo buscou, sem sucesso, organizar. Assim a imprensa cobria a posse de Michel Temer como Presidente da República em uma das salas do Palácio do Planalto no ano de 2016.
Após um processo de impeachment que dividiu o país, Dilma Rousseff era deposta por ter cometido crime de responsabilidade, pena determinada pela Constituição Federal ao chefe do Executivo. Golpe parlamentar para uns, alívio a um Brasil agonizante para outros.
Com o Senador Aécio Neves fazendo as vezes de anfitrião do novo governo, Michel Temer divulgava o novo ministério, convocando cada um dos Ministros que entre palmas, gritos de comemoração, assobios e palavras de ordem, subiam em um pequeno palanque, ombro a ombro em várias filas desorganizadas delineando uma fotografia sem ordem ou composição.
Pouco mais de um ano depois dessa cena, surgem gravações em que o mesmo Michel Temer, em conversa com um empresário, incentiva-o a continuar pagando a quantia de quinhentos mil reais por semana a Eduardo Cunha, ex-Presidente da Câmara e grande regente do processo de impeachment, hoje preso em Curitiba. O dinheiro serviria para mantê-lo em silêncio sobre os bastidores do processo de impeachment e, provavelmente, sobre os bastidores de anos da política nacional.
Frente ao escândalo, partidos políticos, imprensa e sociedade civil surgem com teses que vão desde a renúncia até mais um longo e penoso processo de impeachment. Temer se recusa a renunciar, mesmo tendo sido desmentido poucas horas após fazer uma declaração à nação brasileira afirmando sua inocência, quando foram publicadas as gravações.
Não restam dúvidas da gravidade da conduta do Presidente. Difícil, inclusive, buscar na memória outro episódio na historiografia brasileira em que um chefe de Estado tenha agido de forma tão hedionda contra a moralidade e contra a probidade que o cargo exige que, apesar de sua recusa, e tendo em vista a já visível fuga de aliados e clamor popular, levará, cedo ou tarde, a sua queda, episódio que deixará mais cambaleante a democracia brasileira.
Destarte, uma discussão que se impõe é o que ocorrerá após sua destituição. E sobre isso que venho apresentar uma opinião que, por ser opinião, se baseia nas minhas concepções íntimas baseadas, em alguma medida, em textos que estimo serem de importância para o tema.
Basicamente, duas propostas foram levantadas: a primeira, a de eleição indireta feita pelo Congresso Nacional; e, a segunda, da aprovação de um Projeto de Emenda à Constituição que permitiria as eleições diretas ainda esse ano.
Sobre a primeira, facilmente se delineia seus fundamentos, pois o próprio texto constitucional em seu artigo 80, primeiro parágrafo, afirma que ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.
Assim, em caso de deposição do atual Presidente, o Congresso Nacional elegerá o próximo chefe de governo para concluir o atual mandato e, em outubro de 2018, as eleições diretas ocorrerão normalmente.
O dispositivo é sucinto e a Lei 1.079 - Lei do Impeachment - não disciplina a matéria, apesar do mandamento constitucional, o que deixa inúmeras dúvidas sobre os procedimentos tanto da eleição em si, quanto dos requisitos para os possíveis candidatos, o que, imagino, seria matéria de consulta e regulamentação no seu desenrolar pelo próprio Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal.
A segunda possibilidade seria a aprovação de um Projeto de Emenda à Constituição já protocolizado na Câmara Federal, que autorizaria a realização de eleições diretas, ainda esse ano, para à Presidência da República.
Proposta que não vejo como mais salutar. Apesar de reconhecer como tendo sido um golpe parlamentar o impeachment da Presidente eleita; apesar de reconhecer a debilidade do Congresso Nacional em eleger um Presidente; apesar de saber que só com legitimidade direta haverá possibilidade de alguma reconstrução do Estado brasileiro; apesar, ainda, de saber que a eleição indireta não trará qualquer benefício político para o Brasil. Apesar dessas convicções, e também a de que a Constituição teve uma sucessão de desrespeitos desde o ano passado, não vislumbro que mais uma anomalia poderia saná-la de tudo o que vem sofrendo; seria mais um retalho que o calor do momento - momento gravíssimo, é verdade - costuraria no texto político que por muito pouco vem se sustentando, tanto formal quanto materialmente.
Sim, o texto de 1988 levou seu mais violento golpe quando desconsiderou a legitimidade popular para servir a interesses espúrios de um grupo (me recuso a denominá-los como elite) que se sentiu ameaçado e articulou com os detentores de mandatos o julgamento de um crime que não ocorrera. Citar Kafka seria clichê.
Temo que esse sentimento de efemeridade substitua de vez o mínimo de perenidade que o Estado de Direito deve garantir à sociedade, consolidando a segurança jurídica, garantindo Direitos Fundamentais e a presença popular nos atos políticos.
Sim, desconsiderar os pilares que sustentam uma ordem constitucional tem seu preço, e tal como um grande navio que deve corrigir sua rota, manobrá-los é algo demorado, lento, custoso. Sim, algo lastimável, por fim.
Lembro que a grande celeuma dos que discordavam de que o impeachment de Rousseff era golpe se pautava no estrito respeito aos trâmites legais, caolha percepção dos que confundem processo com matéria, forma com conteúdo, em uma quase que transcrição do diagnóstico de Castanheira Neves sobre como o pensamento jurídico deixou de se preocupar com a validade e a intencionalidade normativas do direito – momentos essenciais do jurídico – para cuidar apenas de sua validade e intencionalidade cognitiva, levando a uma indiferença axiológica-normativa, ficando, assim, o pensamento jurídico pronto a ser sancionador e colaborador de possíveis despotismo. Para o Ínclito Professor português, o positivismo destruiu a razão, convertendo-a em técnica.
O professor espanhol Pablo Lucas Verdú, em sua obra A luta pelo Estado de Direito - brilhante referência à obra do alemão Rudolf Von Ihering - afirma que, no transcorrer do seu desenvolvimento, o Estado de Direito em suas múltiplas formas é uma conquista. Conquista a ser buscada diariamente. Não cabe dogmatismo no Estado de Direito, sendo este a única conquista contra o despotismo que, para além de um pensamento literalmente contratualista, aparenta ser a forma padrão em que se governa se não houver o Direito para impedi-lo.
Uma nova causalidade constitucional talvez derrube de vez o que nos resta democracia e de Estado de Direito. O Brasil sairá fraco de todo esse turbilhão, atingindo mais fortemente, como é quase tradição, os mais fracos. O povo brasileiro está suportando um golpe que não pediu, e um Congresso que não o representa teria que escolher seu novo chefe de governo. Mas é justo lembrar que esse mesmo Congresso é formado por representantes eleitos pelo povo e, de alguma maneira, o representa, sim.
Se passarmos a questionar a legitimidade indefinidamente de todos os órgãos, estamos falidos não representativamente, mas, sim, enquanto uma sociedade política.
Que tudo isso nos sirva de lição para olharmos com a atenção devida nossa condição de povo organizado e o modo como damos nossas vozes a quem deve falar por nós. Se assim não o for, só nos resta a luta para, mais uma vez, buscar salvar o Estado de Direito.