sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Meu testamento

Livre de qualquer induzimento ou coação, resolvo lavrar o presente testamento no qual exaro minha vontade, pela forma e maneira seguinte:

O que eu queria, meu filho, era te falar o quanto eu sorri quando te vi chorar pela primeira vez. Singular paradoxo de uma alegria causada por um grito de agonia. Mas é difícil ignorar a verdadeira agonia que tantos gritam hoje, causada pela omissão ou ação criminosa dos que empreendem forças para privar de liberdade, comida e felicidade tantos e tantos que, iguais a ti no momento do nascimento, se diferenciam por já estarem condenados a uma vida de sofrimentos e luta.

E por falar nisso, meu filho, queria muito te falar sobre as lágrimas que verti pelos teus sorrisos quando fixavas teus olhos no meu rosto, deitado no meu braço. Mas infelizmente sou obrigado a te falar que o sorriso é privilégio, que o máximo que se permite a muitos são intervalos de sofrimento, enquanto outros gargalham à custa da exploração dos que nascerão e morrerão inocentes.

O que eu queria mesmo, meu filho, era te dizer que o mundo é perfeito, que as pessoas são iguais em dignidade, mas você mesmo presenciará que a cor da pele, o sexo, a orientação sexual, a identidade de gênero, a condição social, a religiosidade e tantos outros fatores condicionam a forma que uma pessoa é tratada.

Queria muito te falar que, apesar das atrocidades que cometemos no passado, estamos progredindo, e tudo aquilo que outrora fora proclamado nos ventos da história está cada vez mais perto de se concretizar, mas o que vemos é um retrocesso, meu filho, um antagonismo gratuito, um ódio cada vez mais se agigantando, de modo que a esperança, meu pequeno, tem sobrevivido apenas nos corações dos que ousam sonhar.

Queria ser para você, meu filho, o ser perfeito que te inspiraria, o arquétipo do ser sem defeito, mas não, não mesmo, meu filho, quero te privar de me ver sofrer, de me ver chorar, pois eu fracassei e irei fracassar muitas vezes, e quero que você veja em mim, seu pai, um ser humano falho, muito falho, mas eterno cultivador do desejo do progresso e de evolução, pois apenas assim, reconhecendo os erros, somos capazes de mudarmos a nós e ao nosso meio.
Não, não quero mesmo, meu filho, chorar ou sofrer escondido de ti, quero, ao contrário, chorar abraçado a ti em qualquer momento que a dor me arrebatar, pois pior que sofrer é sofrer sozinho, e em ti quero encontrar meu refúgio. E da mesma forma, meu filho, não se acanhe em chorar junto comigo, pois se em alguém na sua vida você pode confiar, saiba que esse alguém é seu pai.

Muito provavelmente, meu filho, em algum momento da sua vida esse mundo te deixará abandonado em um turbilhão de dúvidas e incertezas, e talvez seja eu o teu repositório da indignação ou incompreensão. Mas não me importo, meu filho, que descontes em mim tua ira, pois saberei que a inconformidade só se insurge contra os que amamos, pois neles é que esperamos as respostas que não temos. Ser pai é ser paciente, e da mesma forma que sei que você se esforçará em compreender o mundo, eu me esforçarei em te compreender.

Eu também tenho certeza, meu filho, que ser pai é ter coragem, e por mais que possas achar que sou inabalável emocionalmente frente às tuas dúvidas, saibas que para tanto eu estarei empreendendo um esforço tremendo, tal como um equilibrista em uma corda bamba. Minha coragem estará sempre em te tratar com ternura, afeto, mas também com rigor, pois só assim nós dois poderemos crescer juntos.

E além do amor que eu irei te dedicar por toda minha vida, meu filho, peço que não me compreendas mal, mas saibas que um dos meus maiores desejos é te ver sofrer.

Quero sim, meu filho, que você sofra, pois não quero que você ignore o sofrimento de tantos e tantos seres iguais a ti que não terão o privilégio de sorrir. Quero, sim, que sofras, pois não quero que padeças omisso frente às injustiças que presenciarás inúmeras vezes na tua vida. Desejo que sofras muito, meu filho amado, ao presenciares a luta inútil que tantos irão lutar para sobreviver.

Quero te ver sofrer, meu filho, pois quero te ver lutando junto com os que pouca força têm para lutar. Quero te ver lutando, meu filho, ao lado dos que só recebem as pancadas do mundo. Não quero te ver calado, meu filho, frente ao mal que pode ser evitado. E quero, sim, te ver lutando a luta para que ninguém mais tenha que lutar.

E declaro a ti, meu filho, por fim, e a quem mais queira saber, meu amor incondicional a ti, e que se algo posso deixar quando eu morrer, que seja a certeza que teu pai só quis ver, em todos os dias da sua vida, um sorriso no teu rosto e que você possa amar muito e se amado mais ainda.

Que você nunca se sinta pesado.

Sejas sempre o fator de mudança que o mundo precisa.

Do seu pai, que hoje e para sempre te amará, Manoel.