quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Lascaux, o espaço e as pichações

Em meados da década de quarenta do século passado, quatro jovens entraram em uma gruta no sudoeste da França sem qualquer pretensão. Em suas paredes, traços inicialmente disformes, em parte devido à enorme dimensão das figuras e da própria estrutura das paredes, em parte devido à primitividade dos traços e à deterioração sofrida em decorrência do tempo, passaram a formar frente aos olhos dos jovens figuras de animais: cavalos, bois, bisões, vacas. Certamente, uma qualquer estupefação inicial que tomou aqueles jovens não se comparou com o que depois o mundo da história e da arte foram tomados: estudos de Carbono 14 estimaram que tais figuras tinham entre 15.000 e 17.000 mil anos.
A certeza quanto a datação que os testes de carbono dão, não se pode também contar em relação aos significados e motivos que os artistas pré-históricos quiseram imprimir nas suas obras. Tal tarefa cabe aos historiadores e artistas. Seriam tais desenhos representações místicas que buscam conjurar no mundo real os animais, que são suas caças e seus alimentos? Talvez a representação figurativa do mundo conhecido por aqueles seres humanos? Ou, simplesmente, um exercício técnico do artista? Difícil, talvez impossível, chegar a alguma conclusão, ainda mais quando se trata de antepassados tão remotos que não deixaram escritos.
Um fato, porém, é inconteste: a precisão técnica e a beleza, tanto estética quanto humana, daquelas imagens. Em muitos desenhos se pode identificar a delineação de sombras, texturas e perspectivas realmente impressionantes. Ademais, e talvez superior a isso, a convicção de que, aqueles homens, idênticos fisiológico e anatomicamente a nós hoje, ensaiando os primeiros passos da arte feita com cuidado técnico e precisão apresentaram a nós, milhares de anos mais velhos, a superação da razão, em seu domínio técnico e na busca pela beleza, em comparação a animalização instintiva que nos fez sobressair sobre as demais espécies, conhecer, dominar e utilizar ao nosso favor - por vezes também ao nosso desfavor - os recursos do mundo que nos cerca.
Seria esdrúxula a comparação, pari passu, das pinturas da grota de Lascaux com as pichações e grafites que encontramos hodiernamente nas nossas cidades. No entanto, tal aproximação leva à reflexão acerca do espaço e dos surgimentos espontâneos da arte. Não havia no paleolítico as cidades nas quais hoje estamos inseridos. A natureza era a cidade daqueles homens, e tudo nela a eles servia. Com o surgimento da urbe, do Estado e da propriedade, concomitantemente se alterou a noção de espaço. Se antes, nada era propriedade, depois, tudo passa a ter um dono, seja o particular, seja o Estado, seja a coletividade.
Da mesma forma, a arte progressivamente foi sendo apropriada, seja pela tentativa de uniformização e padronização de técnicas e estilos, seja através de uma determinação quase mandatória dos lugares de sua exposição: museus e galerias, curiosa tentativa de domesticar o que de mais livre e espontâneo habita o ser humano.
Nos últimos dias, vimos o novo prefeito da cidade de São Paulo travando uma luta hercúlea contra as pichações e grafites naquela cidade, impondo uma acinzentada uniformização do espaço coletivo, apagando obras como o painel de Os Gêmeos - artistas reconhecidos e cultuados mundialmente - no Viaduto do Glicério. Para o prefeito, a arte tem ter lugar específico, quem quiser admirá-la tem que procurar seus espaços, quem quiser criar tem que se contentar com a limitação imposta pelo poder público, o que inviabiliza completamente os que, diferente Romero Brito ou outros afortunados, não têm condições de bancar a exposição de sua criatividade.
Os espíritos livres dos nossos ancestrais criaram nas cavernas uma obra que resistiu aos anos e nos mostrou os primórdios da complexidade de nossa mente, a intensidade da nossa abstração, a singularidade do fenômeno humano em transformar traços em simbolismo do mundo real, a habilidade das mãos formando na nossa percepção a reprodução da realidade, a formação da arte que nos conscientiza, nos fascina e nos emociona; o espírito fechado, ao contrário, dos que parecem ter na arte apenas um atestado capenga de seu pedantismo intelectual, querem se apropriar por exclusão desse mundo quase iniciático que seria a arte para eles.
Pablo Picasso, um dos maiores pintores da história, esteve na caverna francesa, e muitas obras suas, inclusive Guernica, teve grande influência das pinturas de Lascaux.