domingo, 6 de abril de 2014

De enochatos e opiniões ou a comédia do nosso tempo

Os italianos classificam os vinhos produzidos em seu país em vinhos de mangiare e vinho de pensieri. A explicar o óbvio, os primeiros são os vinhos para comer e os segundo para pensar. Quem aprecia vinhos entende bem a diferença. Eu estenderia a classificação para todas as bebidas, com a ressalva que algumas não servem para acompanhar um prato.
Essas conversas sobre vinho trazem a imagem de algum sujeito discorrendo longos tempos sobre os aromas, os taninos, a viscosidade, a safra e as inúmeras variantes de harmonização.  Não entendo o repúdio. Se você for enólogo ou sommelier isso se legitima. Mas se você for um enófilo e quer despejar seu conhecimento vínico enquanto todos comentam sobre o concerto do Megadeth... Vinho de mangiare e de pensieri, tal como tempo para pensar e tempo para beber. Não há enochato, já disseram, há o chato e ponto.
Ladeio o enochato com o enoarrogante, com o enoinconveniente, com o enopseudointelectual. Não se trata apenas de vinho, mas de qualquer coisa. Afora esses e semelhantes, ponho a culpa no maior mal do Brasil no nosso tempo: o excesso de opinião.
Diogo Mainardi escreveu uma crônica em que diz que o maior problema do Brasil é o excesso de opinião, e devido a isso apenas emitia sua opinião se o pagassem para tanto. Se sua esposa vestisse um vestido e pedisse uma sugestão, ele logo estendia a mão à espera de uma uma moeda.
Certa vez na fila dos Correios ouvi uma conversa sobre o Bóson de Higgs que, pela firmeza das assertivas, juraria que se tratava de vários físicos-teóricos entediados na espera para enviar uma correspondência com AR. A conclusão unânime da peleja foi: esses cientistas não têm o que fazer!
Transmite-se cinto minutos em uma matéria na televisão e temos duzentos milhões de especialistas. Compartilha-se qualquer texto de quinhentos caracteres nas redes sociais e forma-se uma elite intelectual.
O excesso de opinião é a culpa do atraso do Brasil. E isso se dá pelo desprezo do brasileiro ao conhecimento edificado seriamente. Se alguma lógica há no mundo é a de que quem estuda mais sobre algo tem mais propriedade para falar sobre. Já disse Nietzsche: em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo, animais inteligentes inventaram o conhecimento. Minha mãe que não leia esse texto, mas a prescrição de um médico é muito mais confiável do que as que ela me dá quando adoeço.
Pobres coitados dos acadêmicos, dos estudiosos, dos dedicados... E Fernando Pessoa ressoa: Estudar é uma coisa em que está indistinta, A distinção entre nada e coisa nenhuma.
O brasileiro ignora a educação, converte em pedante qualquer um que diga “eu sei”, mesmo (e principalmente) quando sabe. Todos instrumentalizam sua educação, basta o que baste e na medida para se conseguir um emprego. Com isso as ciências passam a se resumir à técnica, a produção científica se rarefaz, o que vale é prática imediata sem respaldo e sem futuro, com Universidades sem projetos e/ou sem recursos. Soma-se a isso a glamourização da ignorância que acontece no nosso tempo e querer falar mais de um idioma está a beira de se tornar uma conduta punível pelo Código Penal.
A exceção é tão pequena que não interfere na generalização.
Desprezar o mundo do conhecimento faz com que cada um se ache o dono da verdade, na mesma medida em que constrange as críticas dos arrogantes estudiosos. Com isso todo mundo emite opinião sem o mínimo de dedicação sério sobre o assunto, fala-se qualquer coisa, escreve-se qualquer coisa...
Ivan Lessa disse que o mais difícil é não escrever, porém, ao escrever deve-se tratar tudo às tapas e pontapés. Mas como quem apanha nunca esquece, deve-se sempre tomar o cuidado de saber no que se bate, e, principalmente, saber sobre o que se bate. Primeiro por razões óbvias de sinceridade intelectual de não se utilizar da ignorância de muitos para legitimar a sua (sempre haverá alguém que sabe), e, em segundo lugar, para sua própria integridade intelectual, porque as vezes o conhecimento espancado volta contra o torturador berrando: Não! Ditadura não é uma opção, você não sabe o que é Bóson de Higgs, Augusto Cury não enriquece repertório intelectual algum!!
Dito isso, um destilado de cana de açúcar no tradicional barzinho de Neco Rato me espera, na companhia de pessoas com muita graça, para uma cachaça inteligente, por que hoje a manhã não está para vinho.

3 comentários:

  1. Olá Manoel, por uma dessas da internet, chegou-me o teu texto. Primeiro, parabéns pela reflexão, mas permita-me ventilar a "opinião" de que não há conhecimento apenas nas universidades ou nos livros, e o resto é apenas "opinião". Sabemos que o senso comum já foi ratificado e retificado pelas ciências. Muitas vezes, há apenas uma apropriação, uma mudança de perspectiva de linguagem, de discurso científico, sobretudo nas ciências sociais. Não há conhecimento apenas nos livros ou manuais acadêmicos, ou nos laboratórios de pesquisa. Aliás, se tudo que nós precisássemos conhecer dependesse de educação formal, não teríamos sido uma espécie dominante no planeta, pois como você sabe as universidades surgiram apenas no século XII. Quem pode definir o que pode ser pensado ou expressado Manoel? Quem está legitimado a emitir opiniões, uma vez que opiniões são interpretações particulares do mundo ao nosso redor? Ainda que eventualmente embasadas em algum dado empírico. Por exemplo, o seu texto é uma "opinião" e você levanta uma tese, qual seja: de que o nosso atraso intelectual seria fruto do "excesso de opinião". Tenho a convicção de que você não tem qualquer dado científico sobre isso, é apenas mais uma opinião nesse excesso de opinião que você denuncia. Toda opinião Manuel é antes um desdobramento da nossa personalidade, é a nossa forma mais básica de comunicação. Nada mais do que isso. Mas você pode ser coerente com o que diz, p.ex., apagando o seu "blog"(a não ser que você acredite ser "Prometeu") que é um veículo de opinião, dê a sua contribuição, afinal, se você não domina ou se debruça sobre a antropologia cultural não deveria emitir opinião sobre o nosso processo histórico cognitivo, não é isso que você prega. Mas não faça isso, concorde comigo e continue a emitir as suas opiniões. Forte abraço e parabéns pelo Blog! "Post Escriptum": você critica o Augusto Cury, mas baseia sua opinião em Diogo Mainardi, cuidado com as "opiniões" que você anda lendo, elas uma hora ou outra irão te pegar.

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    1. Caro Daniel, primeiro agradeço a leitura e o comentário. Como você leu no texto, digo que não está apenas na academia está a verdade sobre tudo, e apenas quem estuda em uma faculdade "pode" emitir uma opinião. Mas, sim, que há quem emita opinião sem ler uma página sobre o tema, sem refletir meio segundo, enfim, e ainda não aceita o argumento de autoridade de quem, por ventura, possa ter se debruçado sobre o tema. Opiniões, quando não militâncias, que, por exemplo, defendem o fim da possibilidade de dar opinião, no meu julgamento, é algo no mínimo intelectualmente suspeito, e disso vejo muito (principalmente nessa semana em que o golpe militar no Brasil completou 50 anos), além de se opinar em assuntos específicos (Bóson de Higgs, p. ex.)... Enfim, opiniões fundamentadas, como a sua, devem se multiplicar, mas acho que não demora para alguém comentar que quero ser o dono da verdade, ou que sou arrogante.. No mais, opiniões devem ser confrontadas com outras. Tento no blog escrever (não sei com que sucesso) apenas sobre algo que de alguma forma me dediquei, seja em que área for, e daí trazer uma opinião fundamentada/elegante/crítica; não escreveria jamais sobre algo que apenas superficialmente soube. O texto de Diogo Mainardi, por exemplo, que conheço bastante, foi um referência a uma crônica que tem a ver com o que trato nesse texto, e não se pode comprar Cury com Mainardi. Este último, amando ou odiando, é, sim um sujeito culto e um bom escritor, sempre escrevendo de forma bem produzida e sempre bem fundamentada. Opiniões diferentes, Daniel, não meros achismos.

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  2. Parabenizar o amigo Manoel Alencar pelo texto. Maravilha.

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