terça-feira, 2 de julho de 2019

Crônica de uma cidade

-Uma ossada humana. Dizia quando interrompeu a história para a prova do vinho que o garçom acabara de servir na sua taça. Uma ossada humana, em um saco plástico preto.

-E o que você fez?

-Você me conhece, sabe que eu sou legalista. Fiz o que determina nosso Código de Ética: entreguei às autoridades.

-E lá na delegacia, como foi?

-Foi tranquilo. Por acaso estava lá o prefeito, que gastou um bom tempo tentando justificar o atraso na assinatura da lei da coleta seletiva. Disse que, para implementá-la, faria necessário uma reestruturação urbanística em quase toda a cidade. Mas afirmou que o recurso já está separado. Vamos ver.

-Não consigo encontrar essas notas de petróleo nos Rieslings. Só uma acidez alta.

-Você tem que treinar o paladar e o olfato. O importante é não desistir. O mundo da gastronomia é fascinante, e você que está entrando agora nesse mundo tem que persistir, estudar e principalmente beber.

-Você tem alguma suspeita sobre a ossada?

-Não. Nem me interessa. Minha função se resume a recolher o lixo da cidade. Esses incidentes não são da minha alçada e procuro não me estressar mais do que com o trabalho. Cada um com sua função. 

-De fato, se deixarmos nos envolver por tudo o que vemos no dia a dia a vida seria mais difícil. 

-Por isso esses jantares entre amigos são importantes. Meu dinheiro serve para isso, para viver, conversar com os amigos, bons vinhos e boa comida.

Há quarenta anos, na campanha para prefeito da cidade, Jânio foi o candidato vencedor. Empresário dono de boa parte do comércio e indústria da cidade, tratava seus empregados com o mínimo que a lei determinava, com o máximo de trabalho possível e sem qualquer afeição à polidez com quem quer que fosse.
Ao arrepio da lei, mantinha um mercado nas dependências de suas fábricas, vendendo aos funcionários os itens básicos para sua existência com preços inflacionários, já retendo boa parte dos seus salários. Não aceitava nova contratação sem que o candidato levasse certidão negativa da Justiça trabalhista.
Nos turnos do trabalho, fiscalizava pessoalmente a produção. Proibiu a saída para o cigarro dos fumantes, diminuiu para dois o número de copos d'água que cada um poderia beber, e limitou a duas idas ao banheiro por turno, com exceção das mulheres que estivessem menstruadas, que poderiam ir três vezes.
Tal jeito de ser e tratar seus concidadãos, só em anedotas ofensivas que alguém poderia afirmar que Jânio teria o carisma minimamente necessário para concorrer a um cargo público. Mas Jânio, dispensando maiores racionalismos, e com irrestrito apoio da família, decidiu que seria o futuro prefeito da cidade. E isso porque, por mais que o dinheiro e a posição chefe de metade da cidade o destacasse de todos os outros, sentia falta da aura messiânica que o poder confere. Somou-se, também, o desejo de se vingar dos poucos que o afrontaram, principalmente advogados e juízes, que dilapidaram parte de sua fortuna com condenações volumosas que ocorriam quando algum dos seus empregados buscava a justiça para reparar algumas das tantas ilegalidades que comete diariamente nas suas fábricas e comércios. 
Fez a política que acreditava, comprando quem estivesse disposto a ser vendido. Usou do seu dinheiro como nunca antes. Os comícios eram festas enormes. Obrigava seus funcionários a participarem de todos os atos da campanha. E foi em um desses comícios que abraçou pela primeira vez seus empregados. Abraçou, beijou e chorou várias vezes, vociferando que, sem eles, ele não seria nada, e que sua gratidão seria eterna. Os poucos que se deixavam levar pela comoção do momento, também choravam.
Mas em uma dessas extravagâncias, entrou madrugada adentro em um comício mais acalorado. E ao desrespeitar mais uma lei, dessa vez a eleitoral, foi multado pela justiça. A indignação interrompeu seu entusiasmo e trouxe à sua memória de volta o rancor longevo contra o que chamava de libertinagens da Justiça. 
Já no próximo comício, ao tomar o microfone, fez a promessa de campanha mais ousada já feita. Na ânsia de vingar imediatamente as limitações jurisdicionais que sofrera, em geral, e os juízes e advogados, em particular, prometeu que, se eleito fosse, os salários dos garis seriam maiores do que os salários dos juízes.
A promessa poderia ser mais um dentre as inúmeras que fez, muitas das quais em contradições entre si e com a Constituição. 
Jânio foi eleito. 
E seus primeiros meses na prefeitura foram uma continuação da campanha. Festas, impropérios contra adversários já derrotados, mas agora já sem os abraços, beijos e choros.
Depois de trocar todos os servidores públicos que pôde por laranjas ligados à sua família, a rotina da administração parecia estar construída para passar os anos de seu mandato sem sobressaltos. E assim o seria se não tivesse recebido em seu gabinete mais um oficial de justiça o intimando em um outro processo judicial, dessa vez, por atos de improbidade ligado a nepotismo, irregularidades em licitações e peculato. 
A raiva sequer chegou a completar o ciclo que deixa seu rosto vermelho e sua respiração ofegante, lembrou da promessa que havia feito.
Ainda com o mandado na mão, chamou o seu Chefe de Gabinete e determinou:

- Aumente o salário dos garis.

- Em quantos porcento?

- Quatro mil.

- Aumentar para quatro mil?

- Quatro mil porcento.

- Isso vai comprometer toda a folha de pagamentos, prefeito.

- Foda-se.

Tornar os garis mais ricos que os juízes, para Jânio, era o que de mais cruel poderia fazer contra a classe que tanto odiava. Pois acreditava que as condenações que sofria eram resultado da inveja dos juízes por sua fortuna.

-Pois agora vai ter mais gente mais rica que esses juízes. 

Passados quarenta anos do cumprimento da promessa do prefeito Jânio, observou-se na cidade uma verdadeira mudança de costumes.
Ricos, os garis passaram a gozar da maior respeitabilidade na cidade. As casas, por iniciativa própria, passaram a tratar o lixo com a responsabilidade sustentável nunca antes vista no país.
O pudor de que tão nobres servidores estivessem em contato com seus dejetos, fez com que toda a cidade separasse seus lixos por tipo, acomodando todos em sacos plásticos fechados hermeticamente e inseridos em caixas de papelão lacradas, deixadas organizadas na frente das casas.
As provas de concursos para gari eram realizadas no ginásio da cidade, com candidatos de todo o país. No último certame, com 50 vagas, inscreveram-se 80 mil candidatos. Apesar de exigir nível médio, a maior parte dos inscritos era de bacharéis, mestres e doutores das mais diversas áreas. Muitos com formação no exterior.
Até os costumes mudaram. Unhas sujas viraram moda, e tanto homens e mulheres pintavam a ponta das unhas de preto para, talvez, passarem por garis. Por mais assépticos que os lixos fossem, os desagradáveis aromas que se acumulavam no caminhão impregnavam nos servidores, sendo esse o aroma mais desejado entre homens e mulheres que procuravam namoro. Era natural ver jovens correndo em volta do quarteirão antes de irem para uma festa, tentando adquirir ao menos o suor e seu aroma.
Uma legislação específica para a categoria foi criada na Câmara Municipal, com direitos e obrigações para os profissionais, e também um Código de Ética.
Criou-se da mesma forma uma Associação para cuidar dos interesses dos garis, sempre emitindo notas de apoio aos servidores quando eventualmente cometiam desvios de conduta.

-Sobremesa?

-O tiramisu é com mascarpone ou com imitação?

-Mascarpone, senhor.

-Então vou querer um. E um calvados.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Lei e moral

No início do ano, com todos os decibéis possíveis e custeado com recursos públicos, os seguintes versos de Wesley Safadão foram cantados na maior festa da cidade:
"Sabe por que eu não te largo? / Cê faz gostoso e ainda põe leite condensado / Sabe por que você não me deixa? / É que eu misturo romance com safadeza".
Fugindo da tediosa hipocrisia de tentar impor uma moralidade ou gosto estético, e também escapando da importante discussão sobre o papel do incentivo cultural público, o fato é que, sim, pode-se gostar do estilo musical que se quiser, e não cabe ao poder público interferir na liberdade de expressão, estética e cultural dos cidadãos.
Pois é exatamente a liberdade de expressão que a Prefeitura Municipal de Guarabira elegeu como inimigo nos último dias, ao publicar lei que proíbe a realização de atos culturais que "desrespeitem símbolos religiosos ou promovam a pornografia" em espaços públicos. Mais vago que isso, impossível.
Além da clara inconstitucionalidade, essa lei parece ter alvo certo: a demagogia rasteira e inculta que parece ter se instalado no país.
Repita-se: gosto não se impõe, mas também não se proíbe. As aversões, predileções ou desconhecimento sobre determinada forma de expressão cultural devem ter a garantia de sua manifestação. O contrário é autoritarismo, falta de cultura ou moralização do discurso político.
De um lado, pela lei publicada, deve-se retirar imediatamente das bibliotecas públicas do município clássicos da literatura, como Satiricon e 120 de Sodoma, ou mesmo o brasileiro Casa dos Budas Ditosos, por tratarem de temas sexuais. De outro lado, deve-se proibir os mais importantes filmes do século passado, tal como O Sétimo Selo, de Ingmar Bergam ou Deus e o Diabo na Terra do Sol, do brasileiro Glauber Rocha, por discutirem questões ligadas a religiosidade. A tela A Origem do Mundo, de Coubert, nunca poderá adentrar os museus municipais.
A moralização que se quer praticar dificilmente vai tomar providências contra discursos contra o candomblé, umbanda ou outras religiões de matriz africana, além de não se ater ao desrespeito que podem sofrer os ateus ou que não tenham fé religiosa.
Ao poder público deve recair a obrigação de propiciar que todas as formas de pensamento se manifestem, respeitando a Constituição e as liberdades individuais. O que sobrar a isso é autoritarismo.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Patriotas: leiam!

Em um precário quarto improvisado nas trincheiras do teatro de guerra, o Coronal Dax, em uma discussão com seu superior, o General Mireau, vocifera a seguinte frase: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha".
A frase é de autoria do poeta inglês Samuel Johnson. A cena acima descrita, do filme Paths of Glory, de Stanley Kubrick.
O aparente desacato à nação que tal frase pode aparentar aos desavisados ilustra bem a sintomática fragilidade dos alicerces políticos em que vivemos. No entanto, ao poeta inglês, serviu para denunciar os que, no século XVIII, buscavam justificar toda sorte de atrocidades sob o abstrato manto da nação acima de tudo. À personagem do filme (e também do livro homônimo), serviu como confronto ao comando de uma iníqua guerra, que posteriormente serviu para executar por fuzilamento soldados que se negaram cumprir a ordem de um ataque suicida.
Se antes as mais bárbaras atitudes tiveram no pálio da religiosidade sua proteção, a infalibilidade dos dogmas eclesiásticos passou a ter na signos pátrios sua irracionalidade instrumentalizada, seja por má fé ou por ingenuidade, numa schimittiana demonstração da confusão entre teologia e política.
Em que pese, no entanto, a relativização da Modernidade sob a perspectiva crítica, claro fica que menos o conteúdo que a forma de sua concretização incomoda seus adeptos, de modo que a abertura conceitual de termos como Democracia, Direitos Fundamentais, Autodeterminação dos povos, Liberdade, Igualdade, restam como projetos que contrapõem o voluntarismo déspota. Contraposição incompleta, dirão alguns.
O apego ao nacionalismo cumpre bem o papel de confluir a um projeto um grande número de pessoas. E ao personificar tal sentimento, o autoproclamado representante na terra da Mãe Pátria encarna a imperial prerrogativa da irresponsabilidade. Negar seu projeto é negar a nação; questionar seus métodos é questionar o futuro alvissareiro do país.
Mais ainda, para ser absoluto, o messias político esculpe um inimigo comum. Inimigo esse imaterial, onipresente e apocalíptico. Por não estar em lugar algum, o inimigo passa a estar em todos os lugares. Eis o cenário da irracionalidade que leva à estabilização de um antagonismo perverso que põe, de um lado, os que se acham salvadores de todos e, de outro lado, os que não merecem a qualificação política de cidadãos. É nesse sentido que termos como "cidadão de bem", "vagabundo" e seus congêneres se instalam em um imaginário comum, pré-rotulando os que, por motivos inclusive estéticos, se adaptam em um ou outro grupo.
O Brasil aprofundou na última década um antagonismo social irreconciliável em médio prazo. O silêncio servil dos que ostentam a bandeira nacional a discursos que apregoam violência, divisão, exclusão, torturas e morte saiu das alcovas. Aos demais, resta a solitária tarefa de se insurgir, tal como redigido por Ênio Silveira ao Marechal Castello Branco em carta aberta na Revista Civilização Brasileira, em 1965: "O chamado 'delito de opinião' sr. Marechal, é o crime que devemos todos praticar diariamente, sejam quais forem os riscos. Se deixarmos de ser 'criminosos', nesse campo, seremos inocentes... e carneiros".