Em meados da década de quarenta do século passado, quatro jovens entraram em uma gruta no sudoeste da França sem qualquer pretensão. Em suas paredes, traços inicialmente disformes, em parte devido à enorme dimensão das figuras e da própria estrutura das paredes, em parte devido à primitividade dos traços e à deterioração sofrida em decorrência do tempo, passaram a formar frente aos olhos dos jovens figuras de animais: cavalos, bois, bisões, vacas. Certamente, uma qualquer estupefação inicial que tomou aqueles jovens não se comparou com o que depois o mundo da história e da arte foram tomados: estudos de Carbono 14 estimaram que tais figuras tinham entre 15.000 e 17.000 mil anos.
A certeza quanto a datação que os testes de carbono dão, não se pode também contar em relação aos significados e motivos que os artistas pré-históricos quiseram imprimir nas suas obras. Tal tarefa cabe aos historiadores e artistas. Seriam tais desenhos representações místicas que buscam conjurar no mundo real os animais, que são suas caças e seus alimentos? Talvez a representação figurativa do mundo conhecido por aqueles seres humanos? Ou, simplesmente, um exercício técnico do artista? Difícil, talvez impossível, chegar a alguma conclusão, ainda mais quando se trata de antepassados tão remotos que não deixaram escritos.
Um fato, porém, é inconteste: a precisão técnica e a beleza, tanto estética quanto humana, daquelas imagens. Em muitos desenhos se pode identificar a delineação de sombras, texturas e perspectivas realmente impressionantes. Ademais, e talvez superior a isso, a convicção de que, aqueles homens, idênticos fisiológico e anatomicamente a nós hoje, ensaiando os primeiros passos da arte feita com cuidado técnico e precisão apresentaram a nós, milhares de anos mais velhos, a superação da razão, em seu domínio técnico e na busca pela beleza, em comparação a animalização instintiva que nos fez sobressair sobre as demais espécies, conhecer, dominar e utilizar ao nosso favor - por vezes também ao nosso desfavor - os recursos do mundo que nos cerca.
Seria esdrúxula a comparação, pari passu, das pinturas da grota de Lascaux com as pichações e grafites que encontramos hodiernamente nas nossas cidades. No entanto, tal aproximação leva à reflexão acerca do espaço e dos surgimentos espontâneos da arte. Não havia no paleolítico as cidades nas quais hoje estamos inseridos. A natureza era a cidade daqueles homens, e tudo nela a eles servia. Com o surgimento da urbe, do Estado e da propriedade, concomitantemente se alterou a noção de espaço. Se antes, nada era propriedade, depois, tudo passa a ter um dono, seja o particular, seja o Estado, seja a coletividade.
Da mesma forma, a arte progressivamente foi sendo apropriada, seja pela tentativa de uniformização e padronização de técnicas e estilos, seja através de uma determinação quase mandatória dos lugares de sua exposição: museus e galerias, curiosa tentativa de domesticar o que de mais livre e espontâneo habita o ser humano.
Nos últimos dias, vimos o novo prefeito da cidade de São Paulo travando uma luta hercúlea contra as pichações e grafites naquela cidade, impondo uma acinzentada uniformização do espaço coletivo, apagando obras como o painel de Os Gêmeos - artistas reconhecidos e cultuados mundialmente - no Viaduto do Glicério. Para o prefeito, a arte tem ter lugar específico, quem quiser admirá-la tem que procurar seus espaços, quem quiser criar tem que se contentar com a limitação imposta pelo poder público, o que inviabiliza completamente os que, diferente Romero Brito ou outros afortunados, não têm condições de bancar a exposição de sua criatividade.
Os espíritos livres dos nossos ancestrais criaram nas cavernas uma obra que resistiu aos anos e nos mostrou os primórdios da complexidade de nossa mente, a intensidade da nossa abstração, a singularidade do fenômeno humano em transformar traços em simbolismo do mundo real, a habilidade das mãos formando na nossa percepção a reprodução da realidade, a formação da arte que nos conscientiza, nos fascina e nos emociona; o espírito fechado, ao contrário, dos que parecem ter na arte apenas um atestado capenga de seu pedantismo intelectual, querem se apropriar por exclusão desse mundo quase iniciático que seria a arte para eles.
Pablo Picasso, um dos maiores pintores da história, esteve na caverna francesa, e muitas obras suas, inclusive Guernica, teve grande influência das pinturas de Lascaux.
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