terça-feira, 11 de julho de 2017

Lírios e reformas

Isso porque sucessivos governos, querendo atrair imigrantes europeus, inclusive para melhorar a raça, a eles deu lotes de terra e ajuda econômica. Coisa que nunca se fez, e até se proibiu fazer, para os brasileiros.
(Darcy Ribeiro, O povo brasileiro)

Em 13 de maio de 1888, uma lei com dois artigos punha fim à escravidão no Brasil. O epíteto de Áurea aproximou a Lei assinada pela regente Isabel das luzes que os revolucionários franceses proclamavam em outro Continente. 
Sendo o último país das Américas e um dos últimos do mundo (antes apenas de Zanzibar, Etiópia, Arábia Saudita e Mauritânia), o processo foi lento e penoso no Brasil, com sua elite agrária e política resistindo com todas as forças a esse inescapável passo em caminho ao reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. A convicção de que homens e mulheres não podem ser instrumentalizados pelo simples fato de serem fins em si mesmos, detentores de uma dignidade que atravessa qualquer contingência, apenas lentamente se acomodou na totalidade dos brasileiros.
No dia seguinte, os festejos dos que entendiam a importância histórica dessa medida, ainda que tardia, contrastavam com as reações conspiratórias dos que definiam a nova medida como desestabilizadora da economia nacional, lamuriando suas perdas e a irremediável queda na sua qualidade de vida futura, tendo em vista que, de agora em diante, teriam que ser obrigados a pagar mão de obra.
Coadjuvante a este cenário, filas de negros agora livres cortavam os campos das lavouras, portando seus bens que, quando tinham, cabiam com folga em uma trouxa de pano. Olhavam-se como a perguntar um ao outro o que, agora livres, iriam fazer. As luzes dos ideais iluministas não chegavam a fazer esquecer que sua realidade em nada mudaria: sendo a liberdade a flor mais bela do campo humano, não exalaria seu perfume sem que as outras condições assim permitissem. A lei não basta, os lírios não nascem da lei, citaria, emprestando mais dignidade aos versos de Drummond, o Professor Antônio Cavalcante.
Livres, mas sem liberdade, pois ausentes as condições materiais para exercerem qualquer atividade, estigmatizados por séculos de legitimação legal da violência contra si, longe, portanto, de qualquer discurso meritocrático, viam-se novamente presos, novamente escravizados.
Aos que continuaram o caminho oposto à senzala, restou o subemprego, a discriminação, a periferia, quando não a criminalidade. Outros, no entanto, sem enxergar outros horizontes, esqueceram a dignidade que a lei os concedera e voltaram para implorar emprego aos seus antigos senhores que, muitas das vezes, há poucos dias haviam os torturados, em seus corpos e dignidades, pondo-os nas mesmas condições - as vezes nem tanto - de seus animais. Para alguns, essa seria uma negociação em igualdade, e resta perguntar em quais termos essa condições evoluiu desde então, mesmo com uma legislação que punha condições irrenunciáveis. 
Hoje o Brasil aprovou uma reforma trabalhista que, longe de se confundir com as condições de escravidão, traz para o mesmo banco empregado e empregador, além de simplesmente excluir inúmeros outros direitos tão duramente perseguidos através dos séculos; tira novamente do trabalhador brasileiro a possibilidade de ter o mínimo. Mínimo que sequer cogita a elite viver em tais condições. Mínimo que, a cada dia, a partir de hoje, será mais mínimo. 
As leis não fazem lírios, mas podem, sim, destruí-los.

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