segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A velha

Manoel Alencar

Ainda com os resquícios da imponência dos equinos que as inúmeras gerações de cruzamentos desordenados a haviam tirado, a mula andou com passos cansados de uma manhã de trabalho e parou em frente ao pequeno portão que dava acesso ao alpendre. Trazia na cernelha, no dorso e no lombo as marcas mal curadas de anos de selas afiveladas. Ostentava uma crina suja e enrolada de uma maneira impossível de desenrolar. O cheiro forte do seu calor aportou junto com ela na entrada da casa. Abanando as orelhas feridas, levantou o rabo e despejou uma quantidade de fezes no portão, colocando uma massa esverdeada ainda um pouco úmida como obstáculos aos que entrarão e sairão da casa.

A velha ignorou completamente a mula, pelo costume da convivência ou pela incompreensão de sua presença. Estava deitada na rede sendo mal vigiada pelo neto que a alguns metros triturava na máquina os alimentos dos animais. Também ele não se preocupava com sua atenção intermitente, pois o máximo que poderia acontecer era ela se levantar e sair andando para algum lugar, que inevitavelmente seria ou ao interior da casa, onde crianças assistiam à televisão, ou sairia de casa, em um descampado com uma baraúna no meio caminho entre a casa e um abandonado posto de saúde. Em qualquer dos casos, desligaria a máquina e iria trazê-la de volta à sua rede, enquanto sua irmã terminava o almoço.

A despreocupação do neto se respaldava nos últimos anos sem que houvesse qualquer incidente. Não fosse uma vez que se levantou e foi a seu encontro no cocho para perguntar onde estava seu marido, que havia morrido há mais de vinte anos, e outras tantas que saíra ao encontro da baraúna, tendo em todas as vezes seu filho, com maior ou menor relutância, conseguido trazê-la de volta, nenhum outro incidente ocorrera. Afora esses pequenos episódios, passava o dia, as semanas, os meses e os anos sendo colocada pelas pessoas nos lugares que elas queriam, e que quase sempre foi uma alternância entre alguma cadeira, alguma rede, sua cama ou o banheiro.

Sua rede dividia o alpendre com cadeiras de balanço, troncos de árvores que faziam as vezes da bancos, e outras redes. O vento fazia com que tudo balançasse fantasmagoricamente: as redes, as cadeiras, seus cabelos, seu vestido. O alpendre era o lugar mais ventilado não só da casa, mas de tudo o que havia ao seu redor. Não foram poucas as vezes em que achou que alguém estava na rede que há pouco metros da sua balançava sozinha. Ficava muitas vezes na dúvida nas poucas horas do dia que ficava deitada ali. Por vezes gritava a alguém que a escutasse perguntando quem estava do seu lado, sendo sempre ignorada, outras vezes apenas se esquecia da sua preocupação e se calava.

A criança tediosamente assistia sem qualquer importância a algo que era transmitido pela televisão. A luxuosa mesa de jantar, herança de incontáveis gerações, era o último obstáculo entre a sala e o corredor que dava na cozinha, onde um fogão com uma cor que dificilmente poderia ser descrita com poucas palavras sustentava as suas duas únicas chamas na preparação de um arroz branco e um feijão verde. Um fogo de lenha sustentava uma chama viril, vermelha, em que em cima uma caçarola torrava uma galinha de capoeira.

Com um grito que tomou toda a casa, a neta ordenou a reunião da família à mesa para o almoço, imediatamente a máquina de triturar e a televisão foram desligadas, e vaqueiro e criança tomaram seus lugares na mesa.

A velha reparou que alguém a observava junto a rede, e a filha, com um rosto franzido de uma natural repulsa, disse: - Mãe, venha tomar banho pra almoçar. E a velha respondeu de forma áspera: - Banho pra que? Não tô cagada. No que a filha respondeu já levantando a velha: -Tá sim, mãe. A senhora tá cagada.

Levou a velha pelo braço ao banheiro. Passou pela mesa onde todos já esperavam o almoço, atravessando o grande corredor e abriu a porta do banheiro colocando a velha em cima da banheira de cimento. Tirou sua roupa e sua fralda, transformando o rosto em uma careta já acostumada a encarar diariamente aquele odor. Fez da fralda um pacote e a jogou no lixo. Pegou os braços da velha, olhou firmemente nos seus olhos e, falando mais alto que o normal, como se dessa forma a velha tivesse mais chance de entender o que lhe diz, falou: -Vou botar o almoço e volto pra lavar a senhora, não saia daqui. E saiu do banheiro deixando a velha nua, ainda suja em seus excrementos.

Porém, quase que imediatamente depois que porta bateu na parede, a velha saiu do banheiro, abriu a porta, parou por poucos segundos e saiu em direção à cozinha. Lá chegando, passou por trás da neta sem que ela notasse, e quando deu o último passo que divida a cozinha do quintal, a neta saiu com a grande caçarola em direção da mesa. A velha franziu os olhos instintivamente quando os raios quentes do sol atingiram seu rosto, e de maneira mais rápida que seu habitual, saiu em direção à cerca que delimitava a casa. Em um trecho em que o arame farpada havia caído e apenas um poste velho da cerca foi colocado para evitar a fuga dos animais maiores, a velha conseguiu sair. E sem parar, com passos largos e rápidos, saiu em linha reta sem destino. Os galhos, espinhos e gravetos faziam arranhões em seus seios, na sua barriga, nas suas coxas, nos seus braços. Quando começou a ofegar, parou. O sol indiferente continuava a lançar seu calor quase insuportável. Fileiras de sangue começaram a escorrer pelas pequenas chagas no seu corpo. Sentiu sede, resmungou qualquer coisa, deu algumas voltas em si mesma e, novamente, parou. Com grande dificuldade sentou as nádegas nuas no chão quente, coberto de folhas. Por algum motivo ignorava a dor. Alguns insetos já subiam no seu corpo.

O semblante aflito e cansado se transformou subitamente em um misto de surpresa, espanto e alívio, quando a criança para o olhar na velha. Sem saber se gritava para os demais que a tinha encontrado com medo da reação da velha, felinamente se aproximou e parou a poucos centímetros daquele corpo ebúrneo que estava sentado à sua frente. Apesar de ser sua bisavó e de sempre ter dividido a casa com ela, nunca havia a tocado. Observou, já com curiosidade, a frágil figura nua, reparando nas camadas de gordura que se dobravam em todos os lugares de seu corpo. Logo observou os arranhões e os insetos que já passeavam nos ombros, nos cabelos brancos, na barriga e nas pernas. Calculou que seria melhor levar ela mesma a velha de volta à casa. Cautelosamente foi esticando seu braço em direção ao braço da velha, que nenhuma reação esboçou. Já apertando pouco abaixo do seu ombro, foi ajudando a velha ficar de pé, e em seguida a foi guiando de volta pra casa. Em um dado momento, a velha ficou um pouco a sua frente, e a menina observou suas nádegas escoriadas. A cada descoberta do corpo, seu rosto alternava expressões de aflito e curiosidade. Quando os demais observaram que ambas voltavam, exclamações de alívio foram proclamadas. Foram ao encontro da dupla e enrolaram a velha em uma toalha, levando-a de volta para o banheiro.

Em muitos anos, essa foi a maior quantidade de passos dados pela velha sem que alguém a guiasse, e os últimos até o fim de sua vida.

As horas seguintes foram dedicadas ao tratamento dos arranhões. Unguentos nas feridas, pasta d’água nas nádegas assadas, hidratantes baratos em todo o corpo vermelho de insolação. Foi levada para sua cama ainda como cabelo molhado do banho e ostentando uma mistura de aromas nauseante. Foi deitada na cama e enfim a tranquilidade voltou a todos da casa, e também a rotina de sempre, a não ser pela obrigação alternada de cada um ficar as vinte e quatro horas do dia ao seu lado. A contragosto, a cama da menina foi transferida para seu quarto. Quando ia tomar banho sempre alguém ficava à porta do banheiro. A cerca foi consertada.

Assim se passaram os meses e anos seguintes, sempre surgindo uma confusão quando alguém vacilava na tarefa de vigiar diuturnamente a velha. Seu estado também foi se agravando, e passou a ser corriqueiro ela xingar sem qualquer motivo alguém da casa, tendo uma vez proferido todo seu vocabulário desordenado de palavrões à menina que se balançava na cadeira de balanço enquanto a vigiava. Quando isso acontecia, ela sempre parava atenciosamente para tentar aprender cada termo imoral mencionado pela velha para, depois, reproduzir com seus amigos na escola.

Os olhos da velha ficavam a cada dia mais congelados, mais fantasmagóricos, retratando seu definhamento fisiológico. Já quase não tinha qualquer lembrança, mas desde aquele dia, sempre sentia prazer quando sentia o cheiro nauseante da mistura de remédios que passavam no seu corpo.


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